De um sonho, nasce um boi do Cerrado
Updated: Sep 9, 2022
Grupo se forma em Alto Paraíso de GO para brincadeiras da cultura popular
Fotografia de Dudu Coladetti
Com apenas um ano e poucos meses, o boi da Chapada já encanta moradores da região com a sua música, dança e cores.
Muitos já ouviram falar do bumba-meu-boi, da região Nordeste, que aparece nos festejos de junho, principalmente. No entanto, a tradição do boi existe em várias regiões do Brasil.
Tem o boi-a-serra na região Centro-oeste, o boi-de-mamão em Santa Catarina, o boi-bumbá no Norte, no Pará e no Amazonas e mais recentemente, entra para a grande lista de bois, o boizinho da Chapada, que nasceu do sonho de amigos que queriam brincar boi no cerrado.
O início
Tudo começou em 2020, quando Guilherme Fischer, que é músico e Rosa Aline, multiartista, manifestaram o desejo de brincar boi. Ambos tiveram a oportunidade em outras regiões, Fischer com o boi de Pernambuco e Rosa no Rio de Janeiro com o mestre Cacau Amaral, do boi do Maranhão.
Ê comum ouvir na Chapada dos Veadeiros, que os desejos ali feitos sempre se realizam. Talvez por esse motivo, surgiu Marise Barbosa, que é historiadora, etnomusicologa e percussionista, com seus instrumentos, cantos e muita experiência com o boi do Maranhão.
Boi da Chapada no Encontro de Culturas na Vila de São Jorge em Alto Paraíso de Goiás
Marise conta que o Fischer soube que ela havia construído um boi para brincar com as crianças da creche em São Jorge durante o São João e a procurou. "Ele me perguntou se eu poderia ensiná-lo a fazer um boizinho e eu pedi pra brincar também! Ele tinha a referência do boi que brinca em Pernambuco e eu disse que só conhecia o boi do Maranhão. Mas, ele topou".
Fischer ressalta que Marise foi um grande presente para que fosse dado o primeiro passo. "Amo cultura popular, mas não tenho muita experiência e o boi é uma das figuras que se têm para gente pensar como um grupo de festejo popular. O intuito é juntar o povo que gosta das mesmas coisas, ir nas festas junto, aprender junto e Marise chegou para dar impulso nisso", diz o músico.
Esse movimento teve início em Alto Paraíso de Goiás na Chapada dos Veadeiros durante a pandemia. Rosa lembra que no período só haviam ensaios fechados do maracatu Leão do Cerrado. "Queríamos brincar e queríamos fazer isso acontecer. Então, entre amigos, começamos a fazer o boi. Pegamos caixa de papelão, saco de cimento, cola branca e fizemos a estrutura do boi. Depois teve o momento de colocar o couro, decorar. Enquanto íamos montando o boi, íamos cantando as toadas", cita.
Os encontros começaram na casa de Marise Barbosa, como ela conta: "Escolhi e apresentei o repertório, disponibilizei os instrumentos, ensinei os cantos e toques, apresentei o sotaque, o jeito de tocar que aprendi no boi de Pindaré na Baixada Maranhense. Nesse processo foram chegando outros amigos, que tocaram, cantaram, criaram suas fantasias e tanto no chão quanto na perna de pau nos juntamos e começamos a fazer maravilhosos espetáculos", ressalta a percussionista.
O nascimento do boi da Chapada dos Veadeiros
Foi em 2021, durante um festejo de São João, que o boi da Chapada foi apresentado pela primeira vez à comunidade, num ritual de nascimento e batizado.
Rosa Aline relembra: "Era 24 de junho e fizemos uma festa tradicional de São João, porém vegana, na terrinha Pachamama, de amigos comprometidos com a regeneração planetária. Com a intenção de honrar o animal, como sagrado, nosso boi nasceu ali. Ele chegou no Cerrado, em um lugar onde muito boi é aprisionado, boi do agronegócio", salienta.
Fotografia de Dudu Coladetti
Marise conta que o ritual de batizado foi feito na beira do rio com pessoas ao redor, segurando um raminho molhado nas águas dali. "O Fischer como “miolo” do boizinho brincou um pouco se apresentando para as crianças. Depois, fomos com um canto de procissão que eu havia aprendido com as Caixeiras do Divino do Maranhão, e esse canto e o toque de Caixa conduziu o cortejo do rio até a fogueira", lembra.
O mito do boi
O mito do boi da Chapada ainda está em construção. De acordo com Fischer, a atual missão do grupo é se aprofundar na cultura do Goiás, para aperfeiçoá-lo. "A gente quer entender na prática como funciona para construir a nossa própria história", ressalta o músico.
De acordo com a Rosa, desde o início, o grupo entendeu que todos são brincantes e que a ideia é co-criar em conjunto com muito respeito à tradição e aos mestres com quem puderam conviver em outras culturas.
Ela explica: "Nós não temos alguém que trouxe um boi do Maranhão para reproduzir aqui, por exemplo. Nós temos muito respeito à tradição e aos mestres e não queremos nos apropriar de uma cultura que não é nossa. O que a gente quer, é viver essa encantaria, essa magia. Nós pudemos em algum momento no passado beber de outras culturas, conviver com nossos mestres. A gente entende a importância disso. Então, a gente vem trocando com as comunidades para juntos termos o nosso mito. Dentro da nossa história, o boizinho já recebeu vários encantados, como a siriema, que é um ser do cerrado, o cazumba que é tradicional, o guardião do boi e tem também a vaqueira. O nosso boi tem uma mãe sereia, já teve até extra terrestre na roda. Já tivemos também a rainha, por nos inspirarmos na caçada da rainha, um dos festejos do cerrado, principalmente em Colinas do Sul em Goiás".
Uma mensagem do boi para a comunidade
Mesmo com todas as adaptações, o boi da Chapada nasceu tendo por base a tradição que fala de um ciclo de vida, morte e ida, de acordo com os integrantes.
"A comunidade que brinca boi, que se envolve com isso, aprende desde criança que esse é o ciclo natural da natureza, das coisas e por isso, é preciso respeitar o planeta, a regeneração planetária, essa ligação toda com as águas, com a terra, com os cristais, com as flores, com a natureza com a estrela, com a lua, com tudo o que é cíclico, nasce, morre e renasce e principalmente vive. A gente celebra boi para lembrar de celebrar a nós mesmos", disse a multiartista Rosa Aline.
Ao longo de um ano o boi nasceu, morreu e renasceu. As brincadeiras ocorreram na terra Pachamama, no povoado da Capela, no Espaço Sofia, no Jardim Encantando da Drika, no Festival Aya de Música e Medicina e no Encontro de Culturas em São Jorge.
Marise lembra que a morte simbólica do boizinho, também ocorreu na Terra Pachamama em setembro de 2021. "O ritual de morte começou com a fuga do boizinho que não queria ser morto. Todos fomos para o cerrado na noite escura de lua nova com o batalhão tocando e cantando, pernas de pau dançando e várias pessoas acompanhando. Voltamos com ele para a fogueira e o boizinho dançou com a vaqueira Rosa, numa dança ritual de sua morte. Depois o boi repousou nos braços dela em uma cena de grande beleza: a morte que prenuncia nova vida e renascimento no ano seguinte".
Foi na Páscoa, em abril de 2022, na Praça do Bambu, que o boizinho renasceu e no dia 24 de junho de 2022 completou um ano desde a sua criação. Para celebrar, foi feito um ritual durante os festejos de São João na Pachamama, onde o boizinho ganhou chifres.
Como participar?
O grupo do boi da Chapada está de portas abertas para novos integrantes. Podem participar artistas e não artistas.
Rosa Aline diz que pelo grupo já passaram mais de quarenta integrantes, porém, quinze estão fixos, participando dos ensaios na Praça do Bambu em Alto Paraíso e dos eventos. O grupo pretende ampliar ainda mais o projeto, levando para escolas e outras comunidades.
Integrantes do boi da Chapada
A educadora brincante, Mauren Picelli de Godoy, uma das integrantes, conheceu o boi da Chapada em 2022. Ela havia chegado de Londrina (Paraná), poucos meses antes, em dezembro de 2021, para trabalhar em um espaço infantil. Ela conta que essa conexão tornou sua estadia ainda mais significativa.
“Cantar, tocar e dançar, ao som das toadas me faz brilhar. É como uma recarga na minha energia vital ancestral. Me sinto grata e privilegiada por esta oportunidade! Ê, Boi!”, diz emocionada.
Para Rosa Aline, brincadeira é coisa séria e todos são bem-vindos. "A gente é um grupo amador, iniciante, mas que respeita muito a tradição e está aberto a aprender, trocar e a receber. Estamos juntos para viver, co-criar comunidades. A gente tá na busca de poder habitar todos os espaços possíveis e não elitizar, segregar. Nos encontramos na Praça do Bambu por ser pública. Mas, também, nos encontramos em nossas casas, compartilhamos comida, cantos, nossas próprias histórias, e quem tiver interesse pode entrar em contato", finalizou a multiartista.
Para mais informações:
Rosa Aline (61) 9984-6488
Marise (61) 8171-4140
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